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quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Causos de viagem : a caldeirada de peixe - Varre Vento - AM

Em setembro de 2015 a equipe do GSMA retornou ao Amazonas, desta vez com o objetivo de conhecer um pouco do vasto interior da floresta amazônica. Após uma rápida passagem por Manaus embarcamos num motor (em caso de dúvida, consulte o nosso glossário manaura!) rumo a localidade de Varre Vento, distante umas quatro horas descendo o rio Amazonas. Diga-se de passagem que a época do ano não foi escolhida ao acaso, pois este é o período em que as chuvas diminuem e o nível do rio fica mais baixo.

A jornada até Varre Vento e outras peripécias que aconteceram nesta aventura serão contadas oportunamente em outras postagens. Desta vez quero apenas compartilhar uma lição que aprendi e que demonstra o quanto estamos distantes da realidade das pessoas que habitam aquela região.

Uma casa em Varre Vento


Ao chegar, fomos muito bem recebidos pelo dono da casa e sua família. Em pouco tempo estávamos à vontade e conversando como velhos conhecidos. Durante a conversa fiquei sabendo que as terras onde estávamos haviam ficado submersas até poucos dias atrás e que, portanto, ainda não havia sido providenciado uma horta. De fato a casa, apesar de ser construída no estilo palafita, ainda apresentava sinas da passagem da água e a única "plantação" que havia era um pequeno canteiro improvisado numa velha canoa cheia de terra, montada sobre um jirau, onde recém despontavam algumas folhinhas. Posteriormente verifiquei que este é um recurso comum na região como forma de manter os canteiros protegidos tanto da água quanto dos bichos domésticos que andam livremente pelo quintal.

No igarapé.

Lá pelas tantas o dono da casa veio me dizer que um dos meninos (agregado) iria sair para pescar e perguntou se eu não queria ir junto. Segundo ele, haviam muitos convidados e era preciso reforçar a despensa para alimentar o povo, uma vez que na janta seria servido uma caldeirada de peixe! Sempre fui bom de garfo e jamais rejeitei um convite para jantar, ainda mais quando o cardápio inclui este prato típico que aprendi a apreciar em diversos restaurantes das grandes cidades litorâneas. Confesso que estranhei um pouco o fato de ter que buscar o peixe na água, pois normalmente eu pescava meus peixes numa peixaria. Mas com o Amazonas em frente e um imenso igarapé nos fundos, a ideia até que fazia sentido.

A pescaria


Hora de lançar a malhadeira.

E lá fomos nós, três pescadores e um fotógrafo a deitar as malhadeiras em meio aquela paisagem fascinante (para mim, por certo) e um tanto selvagem. Na primeira puxada de rede constatei que o igarapé era habitado por piranhas, que atacaram alguns dos peixes que haviam ficado presos - ou seja - cair na água, nem pensar. Um pouco mais tarde um jacaré atacou uma das redes em busca de comida, causando enorme estardalhaço na água e um belo rombo na malha. O interessante é que o único que achava aquilo novidade era eu. Meus companheiros de pesca encaravam com serena naturalidade todos estes acontecimentos. Inclusive um deles se pôs a pescar piranhas com anzol, pois, segundo ele, "as bichinhas dão um belo ensopado". Deu trabalho e foi cansativo, mas valeu a pena. Além de uma boa quantidade de peixes consegui tirar muitas fotos, as quais vou postando de tempos em tempos no nosso perfil no Instagram (@gastandosola) sob a hashtag #varrevento.

Peixe atacado por piranha.

Piranha vermelha, muito comum na região.

Tá na mesa!


De volta à casa, hora de tratar os peixes e prepará-los para a panela. Mas antes disso, foi preciso ligar a bomba para puxar água do rio e abastecer a caixa d'água, pois água encanada é um luxo que por lá não existe.

Por fim o jantar! E lá vou eu rumo à mesa pensando numa moqueca estilo baiana, com tudo dentro. Mas a realidade é um pouco diferente e o que encontro é um caldo ralo, feito apenas com os peixes e alguns temperos. Para acompanhar, farinha e um ou outro complemento que havíamos trazido de Manaus.

Tratando os peixes para a caldeirada.

Foi aí que caiu a ficha, como se dizia no meu tempo. Estas pessoas moram no meio do nada. O posto comercial mais próximo está a duas horas de rabeta. A enchente levou tudo, é preciso plantar novamente para se ter o quê comer. Enquanto a roça não produz, resta a pesca ou a caça. Parei e olhei em volta. O pessoal animado contava histórias e se divertia, servindo-se do que havia sido posto sem a menor cerimônia. O diferente ali era eu, que só naquele momento começava a perceber a realidade a minha volta. A fome era grande. Servi uma porção generosa de peixe e farinha e comecei a comer devagar, ouvindo a história de como o menino que nos levara na pescaria tinha conseguido aquela cicatriz de mordida de jacaré na perna. Em silêncio, agradeci pela oportunidade de estar ali. Quanto a caldeirada, é preciso dizer que estava uma delícia!

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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O estranho caso da velha que explodiu - Manaus - AM

Quem viaja sempre tem história pra contar, pois o que não falta numa viagem são imprevistos, surpresas e emoção frente ao inesperado. Por vezes os relatos soam tão estranhos para quem não vivenciou aquele momento que chega a ser difícil para o ouvinte acreditar no que conta o viajante. O mesmo acontece com quem pesca, mas neste caso, de tanto exagerar no tamanho dos peixes que escaparam, o termo pescador é quase um sinônimo de mentiroso, não é mesmo?

E o que acontece quando se viaja para um lugar em que todo mundo é pescador? O diário de bordo volta com histórias a rodo, é claro!!

Senta que lá vem a história


Durante nossa estada em Manaus tivemos a oportunidade de confraternizar com grandes figuras, nascidas e criadas em meio a uma natureza exuberante, que só faz excitar a imaginação, e que nos brindaram com causos maravilhosos. De um modo geral todos tem um fundo de verdade e uma certa dose de exagero, remetendo a aspectos da sabedoria popular, lendas amazônicas e provas de coragem. Verdadeiros? Isso já é outra história ...

Entre uma prosa e outra fomos anotando as mais pitorescas, todas contadas dentro de um linguajar próprio, recheado de palavras exclusivas da região. Para facilitar o entendimento, acabamos por reunir os termos num pequeno glossário, reproduzido no final deste post.

Dentre as muitas que ouvimos recordo aquela da sucuri gigante que cava túneis por baixo da Amazônia, causando desmoronamentos na superfície. Uma sonda da Petrobrás até já localizou o bicho. Eles só não matam a cobra porque ela é tão grande que iria contaminar todo o Rio Amazonas! Gostou? Então tome outra: certa feita um caboclo entrou no rio para flechar um tambaqui parrudo. Ia pisando com cuidado no fundo barrento quando sentiu algo duro. Pensando ser um tronco, subiu, firmou a azagaia e retesou o arco. Quando ia flechar a presa, o "tronco" começou a se mexer e veio à tona um enorme jacaré com o caboclo por cima!! Dotado da agilidade que só o medo é capaz de fornecer, surfou o bichão até conseguir chegar na margem, desgostoso por ter perdido a oportunidade de pegar um peixão. Mas de todas as histórias que ouvimos nenhuma se compara a esta:

O Estranho Caso da Velha que Explodiu


Conta o povo que há muito tempo vivia lá pros lados de Varre Vento o Caboclo Chicotada. De origem incerta - alguns dizem que ele era filho de boto e outros de cobra - o certo é que era um mateiro valente, hábil no uso do tessada, versado nas artes da mandinga e capaz de enfrentar qualquer misura sem pestanejar.

Caboclo segue rio acima em seu casco.

Certa feita estava o Caboclo Chicotada em Manaus, negociando uma partida de pirarucu salgado que trouxera para vender na capital, quando soube que uma velha senhora, sua conterrânea, havia partido desta para a melhor enquanto visitava parentes na cidade.

Consternado pela notícia foi apresentar seus respeitos aos poucos familiares reunidos num pequeno velódromo. Entre os suspiros das mulheres e o murmúrio dos homens, ficou sabendo que nenhum barqueiro queria levar o corpo da defunta para ser sepultado em sua terra natal, como manda a tradição. Superticiosos ao extremo, alegavam ser mau agouro transportar um caixão - seja num imponente motor ou num modesto casco. Sabedores de sua valentia, os parentes da falecida apelaram ao Chicotada para que levasse a finada vozinha em sua canoa na viagem de volta.

Sensível aos apelos daquela pobre gente e alheio ao medo que costuma assolar aqueles que temem o sobrenatural, Chicotada não se fez de rogado e aceitou a missão. Assim, ao raiar do outro dia, um pequeno cortejo deixava o velódromo rumo a uma pequena praia no Rio Negro, onde Chicotada e outros quatro caboclos aguardavam para dar início ao transporte daquela carga inusitada.

Feitas as despedidas, lá se foram os canoeiros remando debaixo de um sol forte rumo ao Campo Santo de Varre Vento. Na Amazônia tudo é grande, principalmente as distâncias, por isso não é de estranhar que Chicotada e seus amigos levaram dois dias para alcançar o seu destino.

Como o nível do rio estava baixo devido a época do ano, ao chegarem em Varre Vento os remadores tiveram dificuldade em localizar um ponto de atracação que facilitasse o transporte do esquife. Por isso, decidiram desembarcar primeiro os remadores para procurarem o melhor caminho rumo ao Cemitério. Para evitar qualquer imprevisto, deixaram Chicotada tomando conta da canoa com a defunta e se embrenharam mata a dentro.

Cansado pelo tanto que havia remado para chegar até ali e afogueado pelo calor, o caboclo começou a sentir um aperto de fome a subir pelas entranhas. Conhecedor dos segredos da mata, não tardou a localizar um ingazeiro carregado de frutas que estendia seus ramos sobre a água. Sem perda de tempo remou mais alguns metros e começou a se fartar com aquela delícia que a mãe natureza oferecia.

Entretido em matar quem estava lhe matando, mal percebeu quando um assobio agudo cortou o silêncio que reinava no local. Lá se foi um ingá goela adentro e mais outro e outro e enfim dezenas de ingás já haviam se passado quando o assobio se fez presente, desta vez mais forte:

- Fiuuuuuuuu ...

Agora Caboclo Chicotada escutara bem escutado. A mão direita segurava mais um ingá rumo a boca, mas estava parada, suspenso o movimento no meio do caminho. Que diacho de assobio era aquele? Em toda sua vida, Chicotada nunca escutara nada igual. Bicho não era. Misura também não ...

- Fiuuuuuuuuuu ...

Desta vez o barulho foi mais alto. Chicotada levou a mão ao tessada e fez menção de levantar, mas um poderoso estrondo o fez cair na água, junto com a tampa do caixão!!

Ainda aturdido pela violência do baque, Chicotada segurou na borda do barco enquanto o banzeiro provocado pela explosão se espalhava pelo igarape. Ao sentir o pitiú que empesteava o ar compreendeu logo o que havia ocorrido. A pobre senhora passara desta para a melhor há três dias e o forte calor que haviam enfrentado na viagem devia ter apressado a decomposição. Como o caixão estava bem fechado, os gases formados durante este processo foram se acumulando até que a madeira não pode mais suportar a pressão.

O barulho foi tão forte que os companheiros voltaram correndo, a tempo de encontrar o Caboclo Chicotada tentando voltar para dentro da canoa enquanto recitava seu vasto repertório de impropérios e palavrões que fariam corar até mesmo um frade de pedra!!

Uma vez arrumada a bagunça, o cortejo seguiu rumo a última morada daquela pobre senhora que hoje é mais lembrada pelas circunstâncias de seu enterro do que pelas benfeitorias feitas em vida.

Quanto ao Caboclo Chicotada, contam que seguiu rio acima em busca do portal de acesso ao povo que vive no centro da terra. Mas isto já é uma outra história ...

Glossário Manauara


Azagaia: flecha tipo arpão com ponta de metal, muito utilizada em pescarias;
Açacu ou pau-de-açacu: árvore que exala uma resina que em contato com a pele provoca queimadura;
Banzeiro: ondas, também se diz quando as águas do rio estão agitadas;
Cambada: fieria de peixes;
Cambito: gancho de madeira utilizado para baixar o mato na hora de cortá-lo;
Canoa: barco com mais de 4 m de comprimento;
Carapanã: mosquito;
Casco: canoa pequena, sem motor;
Catraia: barco a remo;
Caxiri: pó alucinógeno;
Dim-dim: sacolé;
Ficou chibata: algo que ficou bom, ficou nota dez;
Ingau: ilha de superfície formada pela vegetação do rio;
Jato: barco de maior velocidade;
Kikao ou Quicao: hot dog, cachorro-quente;
Lancha: barco bem equipado e confortável;
Malhadeira: rede de pesca;
Mambeca: capim flutuante, utilizado como isolante para fazer fogo dentro da canoa;
Maromba: plataforma flutuante utilizada para colocar o gado durante a época da cheia
Misura: assombração;
Motor ou barco de linha: embarcação destinada ao transporte de passageiros;
Pegar o beco: ir embora;
Pegar corda: acreditar numa lorota;
Pegar menino: fazer o parto, ofício de parteira;
Picolé da massa: picolé feito com a polpa da fruta;
Pitiú: catinga, cheiro forte;
Poronga: lamparina de querosone;
Porronco: cigarro de palha;
Quicão: cachorro-quente;
Rabeta: lancha de pequeno porte com motor;
Regatão: barco que cruza o rio abastecendo os ribeirinhos, tipo um mercado flutuante;
Tambaqui: espécie de peixe muito apreciado na culinária amazônica;
Tessada: facão;
Tratar o peixe: limpar e temperar o pescado;
Velódromo: lugar onde se velam os mortos, capela mortuária;

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