terça-feira, 12 de julho de 2016

Trilha Salcantay - 2º dia - através da montanha - Salcantay - Peru

Este post é uma continuação de Trilha Salcantay - 1º dia - dormindo aos pés da montanha

Chegar ao acampamento base foi relativamente fácil. Difícil mesmo foi aguentar a friaca de -10 °C - você leu certo, dez graus negativos! - que fez durante a noite, protegido apenas pela lona da barraca.

Para enfrentar o desafio contava com um bom saco de dormir, roupa térmica para frio intenso, casaco, anorak, meias, gorro e luvas. Apesar de ter utilizado todas estas peças não conseguia esquentar meus pés, que permaneceram gelados boa parte da noite. Lá pelo meio da madrugada lancei mão das botinas. A situação melhorou um pouco, de modo que consegui dormir por mais algumas horas. Mas às 04:30 acordei e, como não conseguia mais continuar deitado, aproveitei para preparar o equipamento para a caminhada.

Depois de organizar a mochila fui para a cozinha, onde Alejandro, o cozinheiro, me serviu um mate de coca bem quente. Lá fora a noite seguia fechada e fria. Enquanto bebia o chá, me aproximei da vidraça para apreciar um pouco mais daquele céu estrelado. Nisto percebi as luzes que brilhavam mais abaixo, lançadas pelo acampamento vizinho ao nosso. Um pouco mais adiante, um hotel de luxo e uma pousada também davam sinal de vida. Havíamos passado por elas no dia anterior, bem como por outras instalações similares que estão surgindo ao longo da trilha, e lembrei de  uma conversa que tivera com o guia a respeito. Dizia ele que há poucos anos não havia sequer cercas por ali. Os campos eram abertos e a presença humana quase imperceptível. Tomei mais um gole de chá e pensei com meus botões que estava fazendo a trilha no momento certo, pois daqui para a frente a presença da civilização será cada vez mais forte.

Aos poucos o local foi ficando movimentado com a chegada de outros viajantes. O café foi servido, o guia passou algumas orientações sobre o percurso do dia e já era hora de por o pé na estrada novamente. Saímos às 06:10 quebrando a fina camada de gelo que se formara sobre a relva.

O acampamento base visto da trilha que leva ao Passo Salcantay

O trecho percorrido neste segundo dia é único sobre vários pontos de vista. É o mais desolado, o mais difícil devido a altitude e, sem a menor sombra de dúvida, o mais bonito de toda a trilha. Dos 70km trilhados, é desta parte que guardo as melhores recordações. Sinto falta da paz gelada do lugar, da presença das montanhas com seus picos nevados e da força bruta da natureza - que emana de cada pedra ali depositada. É uma sensação difícil de descrever, mas muito boa de sentir!

Passamos por Salcantaypampa (4.100 m) por volta das 07:53. Ali encontramos um solitário ponto de venda de suprimentos - o único que encontramos na primeira parte do dia. Apenas um bom tempo depois do almoço encontramos outro. A tienda era uma construção em estilo pirka - pedras empilhadas com um telhado de capim - e nela se podia adquirir água mineral, refrigerantes, biscoitos e outras facilidades da vida moderna. Enquanto descansávamos sentados na mureta baixa olhei em volta, me perguntando onde moraria o atendente, pois pela distância percorrida era impossível que ele viesse abrir o estabelecimento todos os dias. Como não via casas em volta perguntei ao guia que apontou em direção aos fundos da construção e disse, meio divertido:

- Ali Sr. Paulo, naquela casa.

Fixei o olhar e só então pude perceber que, de fato, havia uma casa naquela direção. Mas como também era uma construção em estilo pirka, ficava completamente camuflada na paisagem rochosa ao redor.

Fazendo pose em frente a pirka

O caminho é bem demarcado e vai subindo suavemente por alguns quilômetros até chegar em uma bifurcação. Cada caminho sobe por uma encosta, mas ambos levam ao mesmo lugar. Um é mais longo, com rampas mais suaves. Já o outro é mais curto e íngreme. Optamos pelo segundo e fomos paredão acima. Por algum tempo era possível acompanhar o trajeto das tropilhas na outra enconsta, mais favorável à passagem dos cavalos.

Só há uma direção a serguir: para cima!

Prosseguimos na marcha até chegarmos a Suyroqocha (4.480m) por volta das 10:10. Deste ponto em diante falta exatamente 1 km até a passagem Salcantay.

Na reta final o esforço é cada vez maior e os diálogos começaram a ficar mais espirituosos:

- Ânimo Sr. Paulo, diz o guia;
- Ânimo eu tenho de sobra, respondo apoiado no bastão de caminhada. E arremato: o quê me falta é fôlego!

Mais adiante, já bem próximo dos 4.600 m de altitude, novamente o guia:
- Faltam 300 metros Sr. Paulo!
- Serão os 300 metros mais longos da minha vida, penso eu enquanto levanto os olhos e tento visualizar o ponto que ele aponta no alto da montanha.

Alguns dias depois de ter retornado ao Brasil comentava com um colega sobre esta parte do trajeto e dizia a ele que para conseguir realizar a trilha era necessário um bom preparo físico e mental, pois quando o corpo pede arrego é a mente que o mantém seguindo em frente.

- Interessante, disse meu colega. Em algum momento pensastes em desistir?
- Não, respondi com firmeza. Pelo contrário, na parte mais difícil da subida pensava que não tinha chegado até ali para ficar pelo caminho!

Vencer os últimos metros foi muito difícil, foi literalmente uma subida passo a passo. Talvez por isso ao chegar fui tomado por uma forte emoção, que deixei transbordar num abraço fraterno no guia. E o fato é que, assim que atingimos o objetivo, bastou alguns momentos de descanso para renovar as energias completamente. Talvez pela adrenalina do esforço ou pela euforia da conquista, a verdade é que todo o cansaço desapareceu, sendo substituído por uma agradável sensação de bem estar.

A foto clássica dos que chegaram até aqui

Depois de tirar as fotos regulamentares para comprovar o feito para a posteridade era hora de agradecer à Pachamama e aos Apus que nos receberam naquele dia.

A oferenda


Seguindo a tradição dos antigos quéchuas, erguemos duas pequenas  apachetas, montículos de pedras de forma piramidal, como sinal de respeito e agradecimento. Foi uma cerimônia simples, na qual Christian separou seis folhas de coca perfeitas e com elas formou dois quintus (arranjo cerimonial), um para cada um de nós. Depois de uma breve oração em quéchua depositamos nossas oferendas e nossos desejos sob as pedras das apachetas e nos preparamos para seguir viagem.

Desde nossa chegada já ouvíramos três fortes estrondos vindos da parte alta da montanha. Quando íamos retomar a caminhada a neve acumulada numa das encostas veio abaixo numa espetacular avalanche, um belo espetáculo - mas para ser apreciado assim, a distância.

Para baixo todo santo ajuda


A passagem do Salcantay é o ponto culminante da trilha, em todos os sentidos. A partir daí o caminho se converte numa descida contínua até Collpapampa, que fica apenas a 2.800 m de altitude, onde estava localizado o segundo acampamento.

O caminho é também utilizado pelos arrieiros que transportam equipamentos e bagagens

O trajeto é feito numa estradinha de terra em sua maior parte coberta de pedras e com ondulações suaves, fáceis de serem vencidas. Além disso, a melhora da oxigenação traz um novo alento.

Paramos para o almoço em Huayracmachay (3.850 m) por volta das 14:20. Do acampamento base até aqui foram 10 km de um total de 19 km a serem percorridos neste segundo dia. Depois de uma rápida pausa partimos às 14:45 rumo à Collpapampa, onde chegamos ao cair da noite, lá pelas 17:50.

Aos poucos a paisagem foi mudando e a visão das montanhas desérticas deu lugar à encostas cobertas de vegetação. A temperatura ficou mais amena, por volta dos 20 ºC, sendo preciso trocar os casacos utilizados pela manhã por roupas mais leves.

A floresta

O acidente


De Huayracmachay até Collpapampa a estrada é coberta de pequenas pedras soltas que tornam a caminhada mais cansativa e propícia a escorregões. Como acabamos saindo muito tarde depois do almoço tivemos que acelerar o passo para chegarmos com luz no acampamento. Chão escorregadio e pressa formam uma combinação perigosa e não deu outra: ao pisar em falso bati com força o pé numa pedra. Como resultado, um dedão magoado que não parou de doer até chegarmos em Águas Calientes!

Dois fatos curiosos animaram esta parte do dia. O primeiro foi pouco depois do episódio do dedão: em certo ponto encontramos diversas vacas espalhadas e um enorme boi parado bem no meio da estrada. Para mim, criado no interior, nada de mais e segui em frente. Neste momento ouço o guia avisando que era para ter cuidado com o touro, pois ele podia ser bravo.

- Isso é um boi, respondi. Pode passar que ele é manso. E fui adiante.

Entretanto, alguns passos a frente, havia de fato um touro com cara de poucos amigos. Parei para avaliar a situação e nisto vem o guia, cheio de confiança, e atravessa em frente ao bicharrão, provavelmente convencido de que se tratava de outro boi manso!

A gafe


E o segundo foi uma gafe! Após caminhar por algumas horas resolvemos fazer uma parada para um lanche. Como estávamos em frente a um campo florido pensei que aquele era o lugar programado e já fui largando a mochila e sentando no chão. Nisso o guia arregalou os olhos, dizendo:

O cemitério de Rayanpata
- Aí não Sr. Paulo!

- Por que não Christian? É um lugar tão sossegado;

- Mas é um cemitério Sr. Paulo!!

Estávamos em Rayanpata, a 3.388 m de altitude, em frente a um antigo cemitério tradicional, que mais parecia um jardim. Havia flores por toda parte, as sepulturas estavam cobertas de pedras e as lápides representavam as formas dos antigos deuses quéchuas. Sem querer prejudicar o repouso dos moradores do lugar, rapidamente levantei e pedi desculpas pelo inconveniente. Partimos em silêncio, não sem antes tirar algumas fotos para registar o acontecido.

Collpapampa


Chegamos ao acampamento pouco antes do cair da noite. Estava exausto, depois de uma noite mal dormida e um longo dia que começara muito cedo. Além disso, a dor no pé machucado não ajudava muito. Talvez por isso as primeiras impressões que tive do lugar não foram as melhores. Achei os banheiro sujos e mal conservados: o vaso sanitário não tinha acento, a porta estava quebrada e, embora houvesse energia nas demais dependências, não havia luz na área da torneira onde pretendia me lavar antes da janta. Pelo que pude perceber o restante das instalações eram simples, mas bem ajeitadas.

O acampamento do segundo dia

A boa notícia é que se podia tomar um banho quente por S/ 10,00. A má é que não havia vidros nas janelas do banheiro e a corrente de ar que vinha de fora gelava até a alma!

De volta à barraca tratei do dedo machucado e fiz um curativo reforçado para aguentar o tranco no dia seguinte. Mas isto já é outra história.

(continua no próximo post: Trilha Salcantay 3º dia - Vamos a La Playa)

Este post é uma continuação de Trilha Salcantay - 1º dia - dormindo aos pés da montanha

Veja os álbuns com as fotos de cada dia de trilha em nossa página no Facebook:
Trilha Salkantay - 1º dia de Mollepata a Soraypampa;
Trilha Salkantay - 2º dia de Soraypampa a Collpapampa;
Trilha Salkantay - 3º dia de Collpapampa a Santa Teresa;
Trilha Salkantay - 4º dia - Tirolesa e caminhada desde a hidrelétrica até Águas Calientes;
Trilha Salkantay - 5º dia - Visita à Machu Picchu.

Seguindo o modelo da viagem anterior, quando realizamos a Trilha Inca, iremos alternando entre fotos e relatos de modo a transmitir o mais fielmente possível as emoções desta jornada.

Acompanhe nossas publicações no Instagram através da hashtag #gsmasalcantay.

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