Em Manaus ficamos hospedados na casa de parentes, com os quais já havíamos previamente combinado uma visita a um dos membros da família que ainda vive numa área rural às margens do Rio Amazonas. Uma vez que não há estradas na região, o único meio de chegar até lá é de barco, os famosos "motores" que transportam de tudo e desempenham um importante papel abastecendo e escoando a produção local das comunidades ribeirinhas.
Na noite anterior à viagem, depois de empacotar o equipamento, nos reunimos no pátio da casa para um bate papo antes de dormir. Nossos anfitriões estavam animados e emendavam história atrás de história sobre o Varre Vento, local de nascimento de boa parte dos presentes na ocasião.
No dia seguinte, as 06:00 estávamos de pé naquele frenesi que antecede uma grande aventura. As informações eram um pouco confusas. Para alguns o motor partia às 07:00, para outros, às 11:00. Por fim chegaram os carros que nos levariam ao porto, onde embarcamos por volta das 08:00 para zarpar às 09:00.
J. Cândido, o motor que nos conduziu nesta aventura. |
Estava conosco Tia Zefa, matriarca da família e personalidade muito querida por todos devido a suas habilidades na arte da cura. Assim, conseguir lugar no imponente J. Cândido não foi problema, sendo que para ela o capitão, e dono do barco, nem cobrou a passagem. Pelo que pude apurar, há alguns anos Tia Zefa livrou um de seus filhos de uma doença braba e esta era sua forma de demonstrar gratidão pelo fato.
Vendedor circula entre os passageiros momentos antes do barco zarpar. |
Enquanto aguardávamos a bordo pude notar que as viagens de barco possuem um forte impacto na economia local, sendo que os viajantes contam com uma infra-estrutura de apoio realmente impressionante. A começar pelos carregadores que oferecem seus serviços tanto para levar as bagagens dos que partem como descarregar as dos que chegam. E é bom lembrar que bagagem por aqui pode ser qualquer coisa, inclusive fardos de farinha, pirarucu salgado e por ai vai. Depois tem as barracas de lanches rápidos, comuns em todo o território nacional, e as que fornecem quentinhas para viagem! - muito úteis caso o passageiro não queira encarar o serviço de bordo. E há também os fornecedores de suprimentos diversos: redes de pesca, ferramentas agrícolas, azagaias, arpões, redes para deitar, cordas para atar as redes, sacas de mantimentos, etc.
No balanço da rede
Para quem nunca viajou num motor, é bom que se diga que não há bancos, poltronas ou cadeiras. Na área destinada aos passageiros, no teto, há ripas de madeira atravessando de ponta a ponta para que se possa pendurar as redes. No início é um pouco estranho, mas aos poucos a gente se acostuma e tudo passa a ser natural. Neste dia tivemos sorte, pois chegamos cedo e o barco foi relativamente vazio, de modo que foi fácil acomodar nossas redes próximas umas das outras.
Tia Zefa em sua rede. |
Durante o trajeto não há muito o que fazer, a não ser curtir a paisagem, dormir ou jogar conversa fora. Na parte superior havia uma lanchonete onde era possível adquirir água mineral, refrigerantes, cervejas e lanches rápidos. Também havia mesas e cadeiras, dessas que se encontra em qualquer boteco Brasil afora. Uma brisa boa, que amenizava o forte calor manauara, era um convite a ficar por ali enquanto aos poucos a cidade ia ficando para para trás. A presença humana foi ficando cada vez menos evidente com a mata sendo pontilhada por pequenos flutuantes ancorados nas margens, algumas povoações e nada mais. Na água, barcos de todos os tipos e tamanhos, provando que o rio é de fato o meio de ligação daquela gente com a civilização.
O desembarque
Passadas quatro horas vieram nos avisar que estávamos nos aproximando do destino. Me juntei ao grupo que havia ficado no convés inferior - e que conhecia a localização da casa onde íamos ficar hospedados - para perguntar onde exatamente iríamos descer. "Ali naquela curva", foi a resposta. Fixei o olhar em busca de um pier ou atracadouro e só havia água e barranco. Foi quando descobri que o desembarque seria feito no meio do rio com o barco em movimento!
Hora do desembarque. |
Essa é uma prática comum neste tipo de viagem e todos por ali estavam acostumados. Evita perda de tempo, uma vez que a embarcação não precisa atracar / desatracar e economiza o combustível que seria gasto nas manobras. Para chegar à terra seria utilizada uma lancha rápida que segue atada ao barco. Rapidamente transferimos a bagagem e nos acomodamos na pequena embarcação. Além do nosso grupo, haviam outros passageiros e diversas mercadorias - encomendas de moradores.
Lá se vai a voadora distribuir o pessoal.
Como o acesso à cidade é difícil, muitos ribeirinhos encomendam os suprimentos, que por sua vez são enviados via barco. As formas de realizar as encomendas variam conforme as possibilidades: um conhecido ou parente que vai a Manaus, passar um rádio aos barcos que cruzam ou, com sorte, ligar para alguém via celular. Uma vez feita as compras, basta levar até o capitão e avisar que é para fulano em tal lugar.
Suprimentos entregues aos moradores. |
Uma vez entregue as encomendas e desembarcado outro passageiro, chegou a nossa vez. Nisso o piloto pergunta aonde gostaríamos de descer e a resposta vem pronta: "Ali, no terceiro tronco!" Na hora achei engraçado, mas pensando bem, que melhor ponto de referência num lugar em que não há ruas nem número nas casas e muito menos CEP?
Nossa casa em Varre Vento. |
Ficamos alguns dias em Varre Vento, tempo suficiente para viver aventuras memoráveis e aprender muito com aquele povo simples que nos recebeu de braços abertos. Há alguns dias publicamos o relato de uma destas experiências no post Causos de viagem : a caldeirada de peixe - Varre Vento - AM. Também tivemos oportunidade de tirar muitas fotos em locais incríveis e você pode conferir o resultado no álbum Varre Vento em nossa página no Facebook.
Hora de voltar
O retorno a Manaus foi tranquilo e dentro do esperado. O dono da casa passou um rádio avisando que haveria passageiros aguardando e o barco enviou uma lancha para recolher o pessoal. No caminho uma surpresa: a piracema havia começado e, literalmente, atravessamos um cardume que subia o rio em saltos que passavam acima de nossas cabeças!
Desta vez era um barco bem menor que o J. Cândido e já estava lotado quando subimos a bordo, o que gerou uma certa dificuldade para acomodar as redes. Era noite e a maioria já estava deitada, pronta para dormir - o trajeto da volta levou oito horas ...
Alguns poucos ainda ficaram nas cadeiras contemplando as estrelas e jogando conversa fora. Lá pelas tantas o capitão subiu para perguntar se alguém gostaria de jogar dominó com a tripulação. Resolvi descer para conhecer a embarcação e lá estavam eles atracados no jogo. Ocupando o espaço disponível caixas e caixas térmicas com peixes destinados à venda nos diversos mercados da Capital. O frete ajuda a custear a viagem e é a única forma de escoamento da produção à disposição dos pequenos produtores rurais.
Hora do lazer a bordo. |
Vencidos pelo cansaço, voltamos para as redes para um merecido descanso. Despertamos já em Manaus, no porto da Feira da PanAir, em plena madrugada.
Porto de Manaus na madrugada. |
Não há muitos relatos sobre viagem de barco pelo Amazonas, por isso sugerimos a leitura do post da Vaneza Com Z: Amazonas: viagem de barco recreio pelo Rio Negro.
Você também pode estar interessado nos relatos de nossa primeira viagem ao Amazonas:
- Expedição Amazonas : primeiras impressões e curiosidades sobre a capital manauara;
- Catedral de Nossa Senhora da Conceição : relato do estado em que se encontra a Igreja Matriz de Manaus;
- Uma aventura inesperada : três perdidos no interior da Amazônia;
- Flutuante dos botos : uma atração tão incrível que colocou Nova Airão no mapa;
- O estranho caso da velha que explodiu : um pouco de humor manauara nesta divertida história que exemplifica o uso de termos regionais.